O futuro é raso
Futurismo e eventos de inovação se assemelham a cultos e boa parte do conteúdo apresentado está desconectado da realidade.
Depois de muito tempo, participei de alguns eventos de inovação.
O que concluí?
Futurismo e eventos de inovação se assemelham a cultos e boa parte do conteúdo apresentado está desconectado da realidade.
📺 Este conteúdo também está disponível em vídeo no YouTube no canal do Capitalistas de Merda: https://www.youtube.com/watch?v=KnJPTFCgPZ
🎙️ E também como podcast:
Boa parte da minha vida profissional foi baseada em criar eventos na área de tecnologia. Minha formação é na área de tecnologia e atuei no mercado como programador de software desde o início dos anos 2000, e atualmente sou cofundador e CEO da On2, uma empresa de desenvolvimento de software.
Em 2011 cofundei a BrazilJS Conf, evento esse que tenho orgulho de dizer que é um verdadeiro evento de inovação. Apesar do foco ser em um nicho de tecnologia, ao longo dos anos fomos ampliando o espectro de temas, tornando o evento um dos maiores do Brasil, reconhecido internacionalmente, e sendo considerado o maior evento do mundo (!!!) da linguagem de programação JavaScript (uma das linguagens mais populares no desenvolvimento de software).
Por 10 anos consecutivos realizamos um dos eventos mais relevantes do planeta.
Passaram pela BrazilJS Conf: criadores das linguagens de programação e ferramentas que são a base de todos os serviços e produtos digitais que usamos no dia a dia, pensadores, ativistas, personalidades do mundo da tecnologia e especialistas das grandes empresas do Brasil e do mundo apresentando casos de uso relevantes.
Não ficamos apenas na tecnologia, até porque tecnologia por si só não é nada sem pessoas.
A BrazilJS Conf foi um dos primeiros eventos do Brasil a incluir a diversidade como alicerce, tornando o evento inclusivo e seguro para todas as pessoas participantes.
CEOs, CTOs, devs, pessoas de múltiplas áreas de atuação, que não somente a tecnologia, também passaram pelos palcos do evento. Grandes produtos, ferramentas e tecnologias foram lançadas em diferentes edições.
O “pai” da internet, criador dos protocolos que são a base da internet, palestrou na BrazilJS Conf.
A biblioteca ReactJS, a mais popular ferramenta para construção de interfaces da atualidade foi apresentada pela primeira vez na América Latina, na BrazilJS Conf.
Um dos mais populares frameworks para construção de aplicações Web, o Next.js, teve uma de suas primeiras aparições, por meio do seu criador Guillermo Rauch, na BrazilJS Conf.
Tecnologias inovadoras e disruptivas, como 3D na Web, robôs fazendo drinks com software open-source a música sendo desenvolvida com programação em um navegador também foram apresentadas na BrazilJS Conf.
Em fase embrionária, os temas de realidade virtual (VR), realidade aumentada (AR) e realidade mista estiveram presentes na BrazilJS Conf, com apresentações de betas desenvolvidos por grandes empresas como Mozilla e Google, e casos de uso, como no New York Times.
Debates críticos sempre fizeram parte da grade da BrazilJS Conf. Um dos primeiros eventos de tecnologia no Brasil (se não o único) a abordar o impacto da tecnologia na sociedade, foi a BrazilJS Conf.
Em 2017, André Staltz já nos alertava sobre os problemas causados pelas big techs e a decadência da internet moderna.
Uma das primeiras transmissões ao vivo de um evento no YouTube no Brasil, foi da BrazilJS Conf (2013).
Todas as palestras da BrazilJS Conf foram disponibilizadas gratuitamente no YouTube, no canal da BrazilJS.
O valor do ingresso para participação da BrazilJS Conf foi sempre muito baixo, sendo sempre um dos eventos mais baratos e inclusivos do Brasil.
Milhares de pessoas passaram pelo evento. Mudamos a vida profissional - e talvez além da vida profissional - de muita gente. Mudamos o mercado de eventos no Brasil e também mudamos, de certa forma, o mercado de tecnologia no país.
Isso é um evento inovador. A BrazilJS Conf, sim, pode ser caracterizada como um genuíno evento de inovação.
O evento sempre foi honestamente focado em comunidades, antes mesmo de virar moda falar de comunidades em eventos. Nosso evento sempre teve como objetivo fazer a diferença na prática e não somente no slogan.
Após participar de alguns eventos de inovação, fiquei com o sentimento de que o futuro é chato, entediante, e de certa forma, distópico, tipo o filme Idiocracy, de Mike Judge.
Aliás, isso não é nem uma previsão (não sou futurista), é apenas uma constatação sobre o presente e de como ele poderá moldar o futuro.
Normalmente ouço de forma crítica e desconfiada o que coaches ou futuristas falam.
Como este perfil se tornou a base intelectual da grade de palestrantes de eventos, fiquei atento.
Não quero ser injusto com os eventos, pois o “coachismo” está enraizado na sociedade, nas redes sociais, no mercado, e naturalmente acabou também se popularizando nos eventos.
Vale salientar que existem pessoas coaches e futuristas muito sérias e que fazem um trabalho interessante e com base em evidências, deixando claro as limitações de previsões e de ensinamentos empíricos.
Voltando a minha participação, minha expectativa era bem baixa. Contudo, fiquei um pouco surpreso. O sentimento que ficou foi apenas de que o futuro é chato e raso demais mesmo, ao menos, levando em conta minha perspectiva e o que espero do futuro.
Percebi que as palestras e debates eram muito rasos e me faziam querer não estar ali. Meu cérebro simplesmente viajava para outros lugares bem mais interessantes.
Eu não estou no TikTok, mas imagino que a experiência deva ser parecida. No TikTok talvez o conteúdo seja um pouco mais profundo, ou ao menos útil e engraçado.
Foi exaustivo assistir palestrantes falando sobre o ChatGPT e todos os clichês repetidos sem embasamento. Me pergunto o quanto do que foi falado é baseado em algum tipo de estudo de fato.
Todas as falas que vi sobre inteligência artificial e ChatGPT me pareceram baseadas em algum vídeo de 10 minutos no YouTube, produzido por alguém que que não é profissional de qualquer área que possa ter embasamento na tecnologia em si. Me pareceu apenas especulação da especulação.
Assisti algumas palestras do mundo do investimento e foi difícil conter o sono e o tédio e não tive nenhum insight que posso utilizar no meu dia a dia como empreendedor.
Grande parte do que ouvi era baseado em histórias de empreendedores(as) que pareciam bem afortunados e que contavam histórias vencedoras associadas a uma vida difícil. Entretanto, fiquei com o sentimento de boa parte da narrativa era encenada.
Em alguns casos busquei mais informações sobre a pessoa palestrante e percebi que a mesma vinha de família rica, ou morou fora do país, ou só começou a trabalhar depois de terminar a faculdade. Estes clichês do mundo do empreendedorismo burguês são bem comuns, apesar de exceções existirem.
Percebi que grande parte das inovações foram apresentadas por narrativas rasas e muitas vezes sem coerência. Alguns argumentos e ensinamentos já estão presentes massivamente no YouTube, em conteúdos como “você pode ficar rico utilizando a ferramenta de inteligência artificial X para criar imagens” ou “você pode aumentar a receita da sua empresa substituindo o processo Y pela inteligência artificial Z que pode gerar vídeos”. Este tipo de conteúdo em sua grande maioria pode ser considerado até mesmo como desinformação e enganação.
O que me deixou ainda mais frustrado é que as pessoas apresentando conteúdo não estão apenas falando coisas aleatórias que não vão acontecer ou que estão completamente desconectadas do mundo real. Me assustou ver uma audiência aplaudindo de pé em êxtase falas que não tem base alguma na realidade.
Se existe algum metaverso, é esse aí.
Também percebi uma simetria com o momento atual em que vivemos com acesso a um amontoado infinito de informação, que por muitas vezes acaba tornando inviável o consumo.
Eventos de inovação estão traçando uma estratégia de abundância de conteúdo, onde as opções são quase infinitas, porém, por muitas vezes sem o aprofundamento necessário. Afinal de contas, como elaborar algo relevante sobre o ChatGPT em 10 minutos?
Concluo que tudo que vi está muito mais próximo de um culto futurista ou de um esquema de pirâmide do que inovação.
Talvez estejamos mesmo na era do conteúdo e conhecimento raso, na era do culto ao absurdo, na era da desinformação, e isso infelizmente chegou no eventos de inovação.
Seguirei acompanhando e participando, afinal de contas não se pode generalizar. Imagino que existam muitos eventos de inovação por aí que devem estar indo na corrente contrária, assim como a BrazilJS Conf fez com eventos de tecnologia.